(imagem do google)
Recentemente, mais exatamente ao final de 2014, enfrentei um verdadeiro vale de lágrimas junto com meu filho Eric e o sentimento foi de desamparo, desproteção e não-pertencimento. Desnecessário elencar os detalhes desse momento difícil: seria revivê-lo, e não quero fazê-lo quando uma pequena luz parece indicar a estreita porta de saída. No entanto, partilho com vocês um ensaio que enviei para submissão à Revista Jangada, periódico eletrônico do curso de Letras da Universidade Federal de Viçosa e que foi aceito para a mais recente edição, cuja temática proposta contemplou as "Marginalidades". Que sirva de informação, fonte de conhecimento e - quem sabe? - de auxílio para quem enfrenta a mesma realidade. Eis aí
Eric, o menino
Autoria: Angela Fonseca
“Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho ímpar.”
Carlos Drummond de
Andrade, Igual-Desigual, in A paixão
medida, 1980.
Eric, o menino, desperta pontualmente às 08h30min. Veste-se, com ajuda,
e toma seu desjejum, preparado por outra pessoa. Em seguida, esforça-se em
arrumar a própria cama, brinca um pouco com LEGO e dirige-se para a área na
parte da frente da casa. Toma assento em sua cadeira alta, protegido por um
guarda-sol, e, independente das condições climáticas, fica ali, no seu
“observatório”, assim denominado por seus pais, durante um tempo considerável,
mexendo com os passantes, geralmente gentis e responsivos, e olhando para um
cenário quase sempre igual.
A denominação mais recente para quem
apresenta qualquer tipo de deficiência física, intelectual ou mental, é “pessoa
com deficiência”, de acordo com a convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, promulgada com status de emenda constitucional em 2008. Aos 36
anos de idade, ele faz parte desta estatística de marginalidade
Os números vêm crescendo, é verdade,
mas tais dados quantitativos no Brasil têm pouco significado diante de uma
população que cresce como um todo. De acordo com o relatório do Censo de 2010,
a população brasileira soma um total de 190.755.799 indivíduos. Destes,
2.617.025 são pessoas com deficiência intelectual ou mental. Ou seja, 1,4%. Um universo
considerado insignificante e pouco representativo num país em que as minorias
são consideradas marginais, em especial aquelas que pouco ou nada agregam ao PIB
– Produto Interno Bruto.
Eric,
o menino, cumpre, ritualisticamente, mais um dia de sua vida à margem. Hoje ele
vai sair com seus amigos mais próximos, talvez os únicos no momento – seus pais
-, para ir ao supermercado e dar uma volta de carro. Durante as compras, puxa
conversa com as pessoas, sorri, brinca com um ou outro cliente, põe seus
produtos preferidos dentro do carrinho e sai mostrando “suas compras” para todos.
Geralmente alegre. Beija, com carinho e emoção, as pessoas de cabelos brancos. Lembram-no
a avó, cujo falecimento abriu um buraco, difícil de ser preenchido, em seu
repertório afetivo. Caminha com certa desenvoltura naquele espaço familiar, ao
contrário da dificuldade de locomoção que apresenta na rua. Continua sua
conversa na fila e, em geral, é bem sucedido, por ser engraçado e muito sorridente.
Carismático.
No carro, adora a volta longa que o pai dá, provocando-o com a
possibilidade de estarem “perdidos” pelo caminho. Dá boas gargalhadas. Tem
ótimo senso de direção e, mesmo percorrendo, a cada vez, um local diferente,
percebe quando o pai toma o caminho de volta à casa e tenta convencê-lo a
prolongar um pouco mais o passeio.
Possuidor de uma memória prodigiosa, acima da média e intocada pela
deficiência, apresenta fala fluente, embora pontuada por temas recorrentes. O
pensamento “mágico”, para além do mundo real, denota uma desorganização mental
que sugere personalidade esquizóide. Diagnose apresentada em relatório médico.
As opções de atividades sociais para
pessoas adultas com deficiência mental severa são relativamente escassas nas
grandes cidades. Na maioria dos casos, os pais, já aposentados, têm dificuldade
de reintegrar-se ao mercado de trabalho, não apenas pelo avançar da idade, mas
porque os cuidados com o filho deficiente ocupam-nos quase que integralmente. O
Estado não oferece opções para deficientes maiores de 18 anos e os gastos com
escolas especiais e clínicas são altos, mesmo para quem paga um plano de saúde.
Cuidadores especializados significam um custo muito acima de suas
possibilidades.
O
quadro diagnóstico de Eric, o menino, se agrava, a cada ano. Sua visão vem se
deteriorando, porque a síndrome que apresenta – homocistinúria – inclui, em seu espectro, uma progressiva
luxação do cristalino. Assim, Eric vê a realidade de forma distorcida. Duplamente.
Sente saudade dos ex-colegas, seus iguais. Vez por outra tem vontade de
voltar à escola que frequentava para encontrá-los, o que acontece em dias de
festa, quando se lembram de convidá-lo. Ele, aliás, adora festas. E esta é a
parte interessante: em certos aspectos, reage como uma pessoa dita “normal”. Deseja
namorar, por exemplo, mas sua sexualidade, fisiológica, não está relacionada ao
outro. É meramente hormonal e invariavelmente satisfeita de modo solitário.
Desde 2004 se dispõe de um livro que contém tudo sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, este, aliás, o título da oportuna obra da
Procuradora da República Dra. Eugênia Fávero. Trata dos aspectos jurídicos, aí
incluídos os aspectos penais e processuais. A apresentação é didática, sob a
forma de perguntas e respostas. A leitura do livro permite confrontar a letra
da lei com a realidade da pessoa com deficiência no Brasil: na prática, há um
abismo entre os direitos do deficiente e os deveres do Estado. Mais uma vez,
esse abismo sugere a má-vontade do poder público em fazer cumprir legislação
referente a cidadãos que não geram riqueza. Vejamos o caso da educação, por
exemplo. O deficiente mental pode, sim, frequentar escolas públicas e algumas
delas até possuem espaço de atendimento quase individualizado para,
supostamente, cumprir o protocolo de inclusão. Entretanto, nem todas as pessoas
com deficiência são incluídas e as escolas alegam falta de formação
especializada dos profissionais, bem como de outros recursos, para atender essa
demanda. Restam as escolas privadas que, em razão da especialização, praticam
valores mensais nem sempre compatíveis com a disponibilidade financeira da
família. Muitas até aceitam alunos bolsistas das instituições público-privadas.
Mas isso vem inviabilizando o trabalho, já que tais instituições atrasam
pagamentos, mesmo sabendo que os custos de uma escola especializada são mais
altos. Como resultado, algumas vêm recusando alunos bolsistas, o que torna a
questão ainda mais dramática.
A princípio era mais fácil lidar com Eric. Era, de fato, um menino, na estatura
e na idade, e seus pais, mais jovens e com melhor disposição. Porém, sabiam que não haveria milagres. Seria a
rotina, o alternar entre alegria e desânimo, entre vitórias e frustrações,
desespero e esperança e tudo novamente. Dia após dia. As outras pessoas até se
sensibilizam, tentam entender o que é viver com uma pessoa com déficit mental. Mas, jamais
conhecerão, de fato, a dor da impotência diante da falta de perspectiva de uma mudança.
Na verdade, o deficiente dependerá dos cuidados de alguém para o resto de seus dias.
Mesmo diante da inevitabilidade da morte, pais que não dispõem de condição
financeira elevada para deixarem um legado material, a garantir a sustentabilidade
dessa pessoa, costumam ter pavor de morrer. Quem cuidará? Como cuidará? Terá
afeto e compaixão? Usará o recurso financeiro, amealhado com esforço, para
realmente, prover para a pessoa dependente? Perguntas sem resposta. Só angústia
e incerteza.
Eric, o menino, almoça bem, porque hoje veio à mesa a comida de que
gosta muito, um macarrão instantâneo “rico”, como costuma dizer: sem o condimento
do pacotinho, mas com muito tempero caseiro, verduras e alguma carne. Para
beber, refrigerante de cola, a “pretinha”, que ele adora. Depois, sorvete de
chocolate. Repete, sorrindo: “É festa, é festa!” Quem sabe o desejo de que algo
de novo aconteça e quebre a rotina, acrescente
novidade aos dias sempre iguais... À tarde, volta ao seu observatório,
ou assiste um programa na TV, ou ainda um DVD. Anoitece, ele lancha, toma seus
remédios, um banho e vai dormir. E é só. Pergunto: que será de Eric, o meu
menino?O que terá a vida, ainda, a lhe oferecer?