quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

ERIC, O MENINO

(imagem do google)

Recentemente, mais exatamente ao final de 2014, enfrentei um verdadeiro vale de lágrimas junto com meu filho Eric e o sentimento foi de desamparo, desproteção e não-pertencimento. Desnecessário elencar os detalhes desse momento difícil: seria revivê-lo, e não quero fazê-lo quando uma pequena luz parece indicar a estreita porta de saída. No entanto, partilho com vocês um ensaio que enviei para submissão à Revista Jangada, periódico eletrônico do curso de Letras da Universidade Federal de Viçosa e que foi aceito para a mais recente edição, cuja temática proposta contemplou as "Marginalidades". Que sirva de informação, fonte de conhecimento e - quem sabe? - de auxílio para quem enfrenta a mesma realidade. Eis aí

Eric, o menino

 Autoria: Angela Fonseca

“Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar.”
Carlos Drummond de Andrade, Igual-Desigual, in A paixão medida, 1980.
         
          Eric, o menino, desperta pontualmente às 08h30min. Veste-se, com ajuda, e toma seu desjejum, preparado por outra pessoa. Em seguida, esforça-se em arrumar a própria cama, brinca um pouco com LEGO e dirige-se para a área na parte da frente da casa. Toma assento em sua cadeira alta, protegido por um guarda-sol, e, independente das condições climáticas, fica ali, no seu “observatório”, assim denominado por seus pais, durante um tempo considerável, mexendo com os passantes, geralmente gentis e responsivos, e olhando para um cenário quase sempre igual.
          A denominação mais recente para quem apresenta qualquer tipo de deficiência física, intelectual ou mental, é “pessoa com deficiência”, de acordo com a convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada com status de emenda constitucional em 2008. Aos 36 anos de idade, ele faz parte desta estatística de marginalidade
          Os números vêm crescendo, é verdade, mas tais dados quantitativos no Brasil têm pouco significado diante de uma população que cresce como um todo. De acordo com o relatório do Censo de 2010, a população brasileira soma um total de 190.755.799 indivíduos. Destes, 2.617.025 são pessoas com deficiência intelectual ou mental. Ou seja, 1,4%. Um universo considerado insignificante e pouco representativo num país em que as minorias são consideradas marginais, em especial aquelas que pouco ou nada agregam ao PIB – Produto Interno Bruto.
          Eric, o menino, cumpre, ritualisticamente, mais um dia de sua vida à margem. Hoje ele vai sair com seus amigos mais próximos, talvez os únicos no momento – seus pais -, para ir ao supermercado e dar uma volta de carro. Durante as compras, puxa conversa com as pessoas, sorri, brinca com um ou outro cliente, põe seus produtos preferidos dentro do carrinho e sai mostrando “suas compras” para todos. Geralmente alegre. Beija, com carinho e emoção, as pessoas de cabelos brancos. Lembram-no a avó, cujo falecimento abriu um buraco, difícil de ser preenchido, em seu repertório afetivo. Caminha com certa desenvoltura naquele espaço familiar, ao contrário da dificuldade de locomoção que apresenta na rua. Continua sua conversa na fila e, em geral, é bem sucedido, por ser engraçado e muito sorridente. Carismático.
          No carro, adora a volta longa que o pai dá, provocando-o com a possibilidade de estarem “perdidos” pelo caminho. Dá boas gargalhadas. Tem ótimo senso de direção e, mesmo percorrendo, a cada vez, um local diferente, percebe quando o pai toma o caminho de volta à casa e tenta convencê-lo a prolongar um pouco mais o passeio.
          Possuidor de uma memória prodigiosa, acima da média e intocada pela deficiência, apresenta fala fluente, embora pontuada por temas recorrentes. O pensamento “mágico”, para além do mundo real, denota uma desorganização mental que sugere personalidade esquizóide. Diagnose apresentada em relatório médico.         
          As opções de atividades sociais para pessoas adultas com deficiência mental severa são relativamente escassas nas grandes cidades. Na maioria dos casos, os pais, já aposentados, têm dificuldade de reintegrar-se ao mercado de trabalho, não apenas pelo avançar da idade, mas porque os cuidados com o filho deficiente ocupam-nos quase que integralmente. O Estado não oferece opções para deficientes maiores de 18 anos e os gastos com escolas especiais e clínicas são altos, mesmo para quem paga um plano de saúde. Cuidadores especializados significam um custo muito acima de suas possibilidades.
          O quadro diagnóstico de Eric, o menino, se agrava, a cada ano. Sua visão vem se deteriorando, porque a síndrome que apresenta – homocistinúria – inclui, em seu espectro, uma progressiva luxação do cristalino. Assim, Eric vê a realidade de forma distorcida. Duplamente.
          Sente saudade dos ex-colegas, seus iguais. Vez por outra tem vontade de voltar à escola que frequentava para encontrá-los, o que acontece em dias de festa, quando se lembram de convidá-lo. Ele, aliás, adora festas. E esta é a parte interessante: em certos aspectos, reage como uma pessoa dita “normal”. Deseja namorar, por exemplo, mas sua sexualidade, fisiológica, não está relacionada ao outro. É meramente hormonal e invariavelmente satisfeita de modo solitário.  
          Desde 2004 se dispõe de um livro que contém tudo sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, este, aliás, o título da oportuna obra da Procuradora da República Dra. Eugênia Fávero. Trata dos aspectos jurídicos, aí incluídos os aspectos penais e processuais. A apresentação é didática, sob a forma de perguntas e respostas. A leitura do livro permite confrontar a letra da lei com a realidade da pessoa com deficiência no Brasil: na prática, há um abismo entre os direitos do deficiente e os deveres do Estado. Mais uma vez, esse abismo sugere a má-vontade do poder público em fazer cumprir legislação referente a cidadãos que não geram riqueza. Vejamos o caso da educação, por exemplo. O deficiente mental pode, sim, frequentar escolas públicas e algumas delas até possuem espaço de atendimento quase individualizado para, supostamente, cumprir o protocolo de inclusão. Entretanto, nem todas as pessoas com deficiência são incluídas e as escolas alegam falta de formação especializada dos profissionais, bem como de outros recursos, para atender essa demanda. Restam as escolas privadas que, em razão da especialização, praticam valores mensais nem sempre compatíveis com a disponibilidade financeira da família. Muitas até aceitam alunos bolsistas das instituições público-privadas. Mas isso vem inviabilizando o trabalho, já que tais instituições atrasam pagamentos, mesmo sabendo que os custos de uma escola especializada são mais altos. Como resultado, algumas vêm recusando alunos bolsistas, o que torna a questão ainda mais dramática. 
          A princípio era mais fácil lidar com Eric. Era, de fato, um menino, na estatura e na idade, e seus pais, mais jovens e com melhor disposição. Porém,  sabiam que não haveria milagres. Seria a rotina, o alternar entre alegria e desânimo, entre vitórias e frustrações, desespero e esperança e tudo novamente. Dia após dia. As outras pessoas até se sensibilizam, tentam entender o que é viver com uma  pessoa com déficit mental. Mas, jamais conhecerão, de fato, a dor da impotência diante da falta de perspectiva de uma mudança. Na verdade, o deficiente dependerá dos cuidados de alguém para o resto de seus dias. Mesmo diante da inevitabilidade da morte, pais que não dispõem de condição financeira elevada para deixarem um legado material, a garantir a sustentabilidade dessa pessoa, costumam ter pavor de morrer. Quem cuidará? Como cuidará? Terá afeto e compaixão? Usará o recurso financeiro, amealhado com esforço, para realmente, prover para a pessoa dependente? Perguntas sem resposta. Só angústia e incerteza.
          Eric, o menino, almoça bem, porque hoje veio à mesa a comida de que gosta muito, um macarrão instantâneo “rico”, como costuma dizer: sem o condimento do pacotinho, mas com muito tempero caseiro, verduras e alguma carne. Para beber, refrigerante de cola, a “pretinha”, que ele adora. Depois, sorvete de chocolate. Repete, sorrindo: “É festa, é festa!” Quem sabe o desejo de que algo de novo aconteça e quebre a rotina, acrescente  novidade aos dias sempre iguais... À tarde, volta ao seu observatório, ou assiste um programa na TV, ou ainda um DVD. Anoitece, ele lancha, toma seus remédios, um banho e vai dormir. E é só. Pergunto: que será de Eric, o meu menino?O que terá a vida, ainda, a lhe oferecer?

5 comentários:

  1. Toda as vezes que leio seu texto sobre o Eric me emociono. Não o conheço pessoalmente, mas é como se conhecesse. Seu menino é um ser de luz, alma de menino e vc foi a escolhida pra cuidar desse anjo que nos ensina muito. Bjsss

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    1. É uma experiência de vida, querida amiga Cristina. Uma pancada no orgulho, no egoísmo e na superficialidade. Posso dizer - e longe de mim a vaidade, o mérito é dele -: saio um pouco maior desta existência, no árduo e longo caminho da evolução. Obrigada por seu carinho. Temos que nos conhecer pessoalmente. Beijos carinhosos.

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  2. Comentário de José Luiz Foureaux, que aguardava moderação e reproduzo aqui.
    "Só li agora... por que tinha perdido o endereço. Vim à procura do tal desabafo, daí lembrei-me que foi no Facebook, o famigerado Facebook.. Mas foi bom enganar-me. Li esse texto limpo, claro, transparente que você escreveu. Investimento à vista: a crônica. Você tem a veia! Lembra os textos em prosa de Drummond pela leveza que recorta verticalmente o pensamento. Pensa nisso!
    Beijinho."

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  3. Angela, primeiro escrevi aqui uma porção de coisas, reli; daí achei que era pouco; apaguei; embatuquei definitivamente nos limites das palavras, desisti. Só quero dizer que você escreve com a alma e esta é a marca de poucos. Bacio do F.

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    1. Grata, Fabbrini. Sensibilidade também é a marca de poucos, meu amigo querido. Só por isso você captou o espírito da minha escritura em "Eric, o menino". O mais é generosidade. Bacio.

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