“Tenha um bom dia, senhora. A ETC. & TAL agradece a sua ligação.
Aguarde, por gentileza, para ouvir o seu número de protocolo.” Uma voz
masculina metálica, com requintes de fala humana, cheia de gentileza impostada,
passa a ditar uma série quase infinita de algarismos, pergunta se é necessário
repetir e, ao final, desliga automaticamente na minha cara.
Penso, aflita: fui abduzida! Perdida, irremediavelmente, em um planeta
protocolar... Após o primeiro impacto e uns poucos minutos de reflexão percebo
que vivemos, todos, uma vida protocolar. Não foi sempre assim. Antes da
disponibilidade infinita de tecnologia para todos os usos e abusos, nossas
relações interpessoais eram menos formais e mais espontâneas. Menos virtuais e
mais reais. E, sem dúvida, com um pouco mais de calor.
As vendas, por exemplo. Desde a época das feiras de rua e dos armazéns
hoje substituídos pelos sacolões padronizados, até os grandes magazines e, mais
adiante, os hipermercados e os shopping
centers, tudo era feito pessoalmente, um jogo entre a capacidade de
convencimento de quem vendia e o tamanho do sonho de quem comprava. Geralmente
vencia o vendedor, preparado para convencer o consumidor sobre as qualidades do
seu produto. Antes, o escambo e a barganha. Mais tarde, a pechincha, o pedido
de desconto no pagamento à vista, as possibilidades oferecidas pelos cartões de
débito e crédito, os juros agregados a prestações “a perder de vista” e vai por
aí. Em todos os modelos, o contato com o outro determinava as relações de
consumo. Na maioria das vezes, o negócio resultava bom para todos.
Aí surgiram as empresas virtuais, vendendo de tudo com um simples toque
dos dedos. As imagens ainda reproduzem o antigo formato: há um ícone de um
carrinho de compras para ir-se enchendo com os itens que desejamos comprar. No
caso de roupas e calçados, não há como experimentar, mas o Código de Defesa do
Consumidor está aí para garantir a devolução ou troca em até sete dias úteis
após o recebimento do produto. Isto vale também para todo tipo de mercadoria,
de medicamentos a lingerie, de eletrodomésticos
a livros, estes últimos agora também em versões eletrônicas; enfim, infinitas
oportunidades literalmente na ponta dos dedos.
Provavelmente em razão deste modelo de consumo, também nos tornamos
“gente protocolar”. Houve um tempo, não muito distante, em que os encontros
aconteciam sem maiores arranjos, naturalmente. As pessoas se viam, juntavam-se
e iam ou para um local público ou para a casa de alguém, a fim de ouvirem
música, baterem papo, verem um filme, degustarem alguma coisa, tudo sem
combinação prévia, ao gosto e ao jeito do prazer de estarem juntas. O telefone
era usado para trocas de ideias, receitas, mazelas e conquistas. Mas não
substituía o encontro. Hoje, somos
“melhores amigos de infância” virtuais e até chegarmos ao “olho no olho” vai um
longo caminho, cheio de regras e protocolos a seguir.
Sexo, algo tão instintivo, carnal, também tornou-se “protocolar”.
Entra-se em um bate-papo virtual, sugere-se as preferências de cada um,
contam-se mentiras que nem de longe se parecem com as saborosas fantasias
eróticas de outros tempos. Formam-se os casais, ou os grupos, dependendo do
gosto, e inicia-se uma masturbação mais mental que física, com todas as
“vantagens” que a solidão pode proporcionar. Afinal, o protocolo também protege
contra relações mais afetivas, mais compromissadas, ou seja, nos protege do
amor. Resta-nos o vácuo, difícil de ser preenchido, porque somos criaturas, em
princípio, gregárias e necessitamos do toque do outro para nos sentirmos vivos,
plenos. Para construirmos histórias.
Cogito, ergo sum. Fico imaginando até onde chegaremos, em um mundo cada
vez mais fake. E até quando nos
enganaremos com a possibilidade aparentemente – apenas aparentemente –
fascinante de fugirmos do confronto com nosso eu verdadeiro e com o outro,
nosso espelho a refletir quão solitários somos todos nesta incrível e aleatória
jornada planetária.
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