sábado, 4 de outubro de 2014

PROTOCOLOS DE VIVER

          “Tenha um bom dia, senhora. A ETC. & TAL agradece a sua ligação. Aguarde, por gentileza, para ouvir o seu número de protocolo.” Uma voz masculina metálica, com requintes de fala humana, cheia de gentileza impostada, passa a ditar uma série quase infinita de algarismos, pergunta se é necessário repetir e, ao final, desliga automaticamente na minha cara.
          Penso, aflita: fui abduzida! Perdida, irremediavelmente, em um planeta protocolar... Após o primeiro impacto e uns poucos minutos de reflexão percebo que vivemos, todos, uma vida protocolar. Não foi sempre assim. Antes da disponibilidade infinita de tecnologia para todos os usos e abusos, nossas relações interpessoais eram menos formais e mais espontâneas. Menos virtuais e mais reais. E, sem dúvida, com um pouco mais de calor.
          As vendas, por exemplo. Desde a época das feiras de rua e dos armazéns hoje substituídos pelos sacolões padronizados, até os grandes magazines e, mais adiante, os hipermercados e os shopping centers, tudo era feito pessoalmente, um jogo entre a capacidade de convencimento de quem vendia e o tamanho do sonho de quem comprava. Geralmente vencia o vendedor, preparado para convencer o consumidor sobre as qualidades do seu produto. Antes, o escambo e a barganha. Mais tarde, a pechincha, o pedido de desconto no pagamento à vista, as possibilidades oferecidas pelos cartões de débito e crédito, os juros agregados a prestações “a perder de vista” e vai por aí. Em todos os modelos, o contato com o outro determinava as relações de consumo. Na maioria das vezes, o negócio resultava bom para todos.
          Aí surgiram as empresas virtuais, vendendo de tudo com um simples toque dos dedos. As imagens ainda reproduzem o antigo formato: há um ícone de um carrinho de compras para ir-se enchendo com os itens que desejamos comprar. No caso de roupas e calçados, não há como experimentar, mas o Código de Defesa do Consumidor está aí para garantir a devolução ou troca em até sete dias úteis após o recebimento do produto. Isto vale também para todo tipo de mercadoria, de medicamentos a lingerie, de eletrodomésticos a livros, estes últimos agora também em versões eletrônicas; enfim, infinitas oportunidades literalmente na ponta dos dedos. 
          Provavelmente em razão deste modelo de consumo, também nos tornamos “gente protocolar”. Houve um tempo, não muito distante, em que os encontros aconteciam sem maiores arranjos, naturalmente. As pessoas se viam, juntavam-se e iam ou para um local público ou para a casa de alguém, a fim de ouvirem música, baterem papo, verem um filme, degustarem alguma coisa, tudo sem combinação prévia, ao gosto e ao jeito do prazer de estarem juntas. O telefone era usado para trocas de ideias, receitas, mazelas e conquistas. Mas não substituía o encontro.  Hoje, somos “melhores amigos de infância” virtuais e até chegarmos ao “olho no olho” vai um longo caminho, cheio de regras e protocolos a seguir.
          Sexo, algo tão instintivo, carnal, também tornou-se “protocolar”. Entra-se em um bate-papo virtual, sugere-se as preferências de cada um, contam-se mentiras que nem de longe se parecem com as saborosas fantasias eróticas de outros tempos. Formam-se os casais, ou os grupos, dependendo do gosto, e inicia-se uma masturbação mais mental que física, com todas as “vantagens” que a solidão pode proporcionar. Afinal, o protocolo também protege contra relações mais afetivas, mais compromissadas, ou seja, nos protege do amor. Resta-nos o vácuo, difícil de ser preenchido, porque somos criaturas, em princípio, gregárias e necessitamos do toque do outro para nos sentirmos vivos, plenos. Para construirmos histórias.
          Cogito, ergo sum. Fico imaginando até onde chegaremos, em um mundo cada vez mais fake. E até quando nos enganaremos com a possibilidade aparentemente – apenas aparentemente – fascinante de fugirmos do confronto com nosso eu verdadeiro e com o outro, nosso espelho a refletir quão solitários somos todos nesta incrível e aleatória jornada planetária. 

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