segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

RIBAMAR, ESPANTO E POESIA



(imagem do google)

Ninguém se ilude mais com a imprensa. Toda ela - com raríssimas exceções - a serviço de alguma autoridade ou suposta ideologia, deixou de ser o "quarto poder", passando a "primeira vassala". No entanto, tendo acesso à TV paga, pelo menos consegue-se ver uma ou outra discussão mais interessante, menos pasteurizada. É o caso da Globonews - e longe de mim fazer o elogio da emissora! Mas, ao menos, podemos nos emocionar, vez por outra.
Enterneceu-me rever ontem a entrevista concedida a Roberto D'Ávila por José Ribamar Ferreira, o maranhense Ferreira Gullar, ocorrida à época de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras. Figura ímpar, com suas longas madeixas brancas, seu nariz aquilino, seu olhar sereno e sua sábia capacidade de rir de si próprio. Deve ter sido uma enorme surpresa para muitos conhecer um pouco da história de vida e da biografia pública deste poeta, escritor, dramaturgo, tradutor, memorialista, ensaísta e um dos pilares do neoconcretismo brasileiro. 
No seu dizer, tornou-se escritor por acaso, porque seu pai, numa fase difícil da vida - quem não as tem? -, matriculou-o em uma escola profissionalizante, onde, então, percebeu que não levava jeito para ser alfaiate, marceneiro ou qualquer outra coisa. Certo dia, a professora de língua portuguesa pediu uma redação sobre o dia do trabalho, que o menino Ribamar iniciou com a frase "No dia do trabalho, ninguém trabalha". E seguiu escrevendo. Ao retornar os trabalhos dos alunos, a mestra elogiou seu talento para a escrita, que só não obteve nota total por causa de um ou dois errinhos de português. Ribamar pensou: "Quem sabe eu possa ser escritor!..." Por dois anos, estudou com afinco a gramática do nosso idioma e tomou coragem: começou a produzir textos. A partir daí, todos conhecem a história.
Alguns fragmentos da entrevista impressionaram-me muito. O primeiro deles foi a serenidade e, mesmo, o apaziguamento do escritor. Após haver sido um comunista ferrenho, exilado e preso, ao voltar ao país, - solto apenas pela influência diplomática de alguns amigos do exterior -, Ferreira Gullar insinuou estar decepcionado com a nova esquerda brasileira, por motivos óbvios: falta de objetivos, interesses pessoais, resistência cega, surda e muda diante da realidade brasileira. Há quem diga que, em outro momento, o escritor chegou a chamar alguns intelectuais de "esquerda burra". Pode ser apenas folclore, mas o fato é que o homem que vi ao longo da entrevista era um senhorzinho em paz consigo mesmo, sem vontade de polemizar sobre qualquer coisa. Verdade ou não, Ferreira Gullar mudou, como mudamos todos nós, ao longo dos anos. Após resistir por longo tempo à tentativa de sedução da ABL, finalmente aceitou a cadeira de número 37, deixada por Ivan Junqueira, no dia 5 de dezembro de 2014. Tomou assento por meros dois anos, pouco para quem deixou um versátil e robusto contributo à cultura do nosso país. 
Outro momento que me tocou profundamente foi a sinceridade em revelar que seu último poema havia sido escrito em 2009. Justificou: disse que "a poesia é feito do espanto" e que há tempo ele já não se espantava com tantas coisas. Em tempos de vaidade, arrogância e fome de holofotes, no qual muitos escrevem sob encomenda apenas para obterem láureas e luzes, acalmei minha inquietude pela ausência de inspiração que algumas vezes me ocorre, pela falta desse espanto e por não saber criar sob encomenda ou por mero diletantismo. Já havia sentido isto ao ouvir Adélia Prado, outra poeta com quem tenho afinidade por escrever com simplicidade sobre o cotidiano, afirmar que "às vezes olho para uma pedra e só vejo pedra mesmo". Tenho plena consciência que sequer passo perto do talento e da importância de qualquer dos dois; mais uma razão para ter a humildade de reconhecer que a poesia é que me toma e não o contrário.
Sentirei saudade de Ferreira Gullar e de seu espanto. A morte física é inexorável. Mas seu espírito espantado seguirá me inspirando em minhas aventuras com as palavras. 

4 comentários:

  1. Lindíssima crônica! !! Ferreira Gullar, certamente, está feliz com estas linhas tão bem engendradas

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  2. Perfeito texto Ângela.Por suas palavras conheci um pouco mais sobre ele. Como vc diz a morte física é inexorável, mas um poeta nunca morre não é? Bjs

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